A COISA QUE NUNCA MENTE | FICHAMENTO

 

TEXTO ANTERIOR: O EXÍLIO DO SAGRADO

A COISA QUE NUNCA MENTE

ALVES, Rubem. O que é religião. São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense, 1984

“Coisas que nada significam podem ser transformadas em símbolos. A raposa começou a ficar feliz ao olhar para o trigal… Também o fogo se transforma em símbolo nas velas dos altares ou nas piras olímpicas. E a flor pode ser uma confissão de amor ou uma afirmação de saudade, se jogada sobre uma sepultura…” (p. 53)

Neste capítulo, em que Rubem Alves se revestiu de Durkheim, o autor chama a atenção para dois tipos de coisas: As coisas símbolos se constituem em objetos e ações carregados de significados, estando presentes nelas o julgamento sobre veracidade ou falsidade; e as coisas em si mesmas que significam apenas o que são, estando destituídas de sentido ou de simbolismo, não cabendo nelas qualquer questionamento sobre sua veracidade.

No entanto, significados simbólicos podem ser concedidos a elas por meio de uma inscrição gravada nela ou de sua associação a um fato importante. Da mesma forma, o que parece ser coisas/símbolos podem também ser vistas coisas. Alves exemplifica isso no caso das palavras, das artes visuais e outras manifestações:

"Ao olhar para um quadro ou uma escultura é fácil ver neles símbolos que significam um cenário ou uma pessoa. [...] Uma tela de Picasso deveria ter um baixo grau de verdade… Em nada se parece com o original. Não poderíamos aventar a hipótese de que o artista plástico não está em busca de verdade, de conformidade entre sua obra e um original, mas que, ao contrário, está construindo uma coisa, ela mesma original e única?" (p. 54)

Dessa forma, o julgamento sobre veracidade ou falsidade está ausente nas coisas que não foram feitas para significar algo e não é aplicável ao que é feito apenas para ser belo por si só, como uma escultura, uma obra arquitetônica ou história fantástica.

Houve, com o tempo, uma confusão e inversão entre esses dois tipos de coisas. A ciência medieval, por exemplo, via o universo como coisa/símbolo, cujo significado está lá para ser decifrado pelos homens. Segundo o autor, o avanço da ciência ocidental só se dá justamente quando o universo passa a ser entendido como coisa. Essa inversão também se deu no tratamento dado pelos positivistas à religião.

"Ignoraram-na como coisa social e se concentraram nos enunciados e afirmações que aparecem junto a ela. Concluíram que o discurso religioso nada significava. Conclusão tão banal quanto afirmar que a água, o fogo e a flor não têm sentido algum. Não lhes passou pela cabeça que as palavras pudessem ser usadas para outras coisas que não significar. Não perceberam que as palavras podem ser matéria-prima com que se constroem mundos." (p. 57)

Na ciência positivista a religião passou a ser vista como texto e não como coisa, sendo tratada como mero fato social. Entendida como uma realidade inegável, o julgamento sobre veracidade ou falsidade não se aplica a ela, e, reconhecida como instituição presente na sociedade, a religião possui universalidade persistente e permanente em nosso meio.

Apesar dos variados aspectos e imensa variedade de manifestações, existe um traço comum à todas as religiões, já que,

"assim como no jogo de xadrez a variedade dos lances se dá sempre em cima de um tabuleiro quadriculado e dividido  em espaços brancos e pretos, as religiões, sem exceção alguma, estabelecem uma divisão bipartida do universo inteiro [...]. E encontramos assim o espaço das coisas sagradas e, delas separadas por uma série de proibições, as coisas seculares ou profanas." (p. 59)

O sagrado e o profano se estabelecem por meio das atitudes das pessoas diante de diversos aspectos da vida. O mundo profano é o palco das ações utilitárias, onde o julgamento das coisas se dá pelo critério da utilidade, não existindo valor nelas e nas pessoas em si mesmas, mas naquilo que significam ou representam.

Nesse mundo profano não há permanências e tudo se renova diante da imposição e sobreposição do pensamento econômico sobre todas as coisas e o avanço do individualismo por meio de ações ditadas e determinadas pelo ser humano, estando ele no controle deste mundo e superior a tudo que existe nele.

No mundo sagrado, por sua vez, as coisas se impõem e o indivíduo se vê dependente de algo que lhe é superior, algo envolvido pelo sagrado que o submete às normas de comportamento intransgredíveis. A lógica utilitária cai por terra na medida em que,

"De fato, a transgressão do critério de utilidade é uma das marcas do círculo sagrado. O jejum, o perdão, a recusa em matar os animais sagrados para comer, a autoflagelação e, no seu ponto extremo, o auto-sacrifício: todas estas são práticas que não se definem por sua utilidade, mas simplesmente pela densidade sagrada que a religião lhes atribui. E é isto que as torna obrigatórias." (p. 61)

Com a expansão do modo de produção capitalista, se deu o processo de desintegração do mundo anterior, num período carregado de incertezas sobre o que futuro. Mesmo com o desmonte e relegação do mundo sagrado ao segundo plano, não se impôs a lógica do utilitarismo extremado.

Ao contrário, preservaram-se a organização em sociedade e a razoável harmonia social. Isso se deu por um freio aos impulsos dos interesses e da satisfação pessoal, o que permitiu a convivência apesar do pragmatismo do mundo moderno

A vida social permanecente no mundo capitalista não se enquadra na lógica do sistema capitalista, onde a utilidade deveria nortear as normas de convivência, se sobrepondo a elas regras que não foram criadas por nós e tampouco pelo sistema.

"Do ponto de vista estritamente utilitário seria mais econômico matar os velhos, castrar os portadores de defeitos genéticos, matar as crianças defeituosas, abortar as gravidezes acidentais e indesejadas, fazer desaparecer os adversários políticos, fuzilar os criminosos e possíveis criminosos… Mas alguma coisa nos diz que tais coisas não devem ser feitas. Por quê? Porque não." (pp. 62-63)

O sagrado então persiste a despeito do avanço da secularização e se mantém como centro das normas de convívio social garantindo a relativa harmonia. A religião exerce o papel de vigilância sobre a consciência individual coagindo ações impulsivas. A permanência dela está refletida na própria sociedade que acolhe o indivíduo e está fundada na força, sentimento que é transmitido ao fiel.

Durkheim percebeu essa consciência sobre o sagrado como resultado da capacidade humana de imaginar, sedimentada na busca por mundo ideal, entendida por ele como equivalente ao sagrado, dando-nos a habilidade de revestir os fatos e as coisas com seus símbolos. Dessa forma, Rubem Alves conclui sobre essa visão de Durkheim:

"Sua certeza de que a religião era o centro da sociedade era tão grande que ele não podia imaginar uma sociedade totalmente profana e secularizada. Onde estiver a sociedade ali estarão os deuses e as experiências sagradas. [...] A religião pode se transformar, mas nunca desaparecerá." (p. 66)

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