O EXÍLIO DO SAGRADO | FICHAMENTO

 

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O EXÍLIO DO SAGRADO

ALVES, Rubem. O que é religião. São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense, 1984

“A transmissão da herança, os direitos sexuais dos homens e das mulheres, atos que constituem crimes e os castigos que são aplicados, os adornos, o dinheiro, a propriedade, a linguagem, a arte culinária - tudo isto surgiu da atividade dos homens. Quando os homens desaparecerem, estas coisas desaparecerão também.”(p. 37)

As coisas que fazem parte do mundo dependem da existência dos homens e das mulheres, demandando deles as ações que o sustentam. Esse mesmo mundo, consolidado, se torna aparentemente natural a partir do momento em que o encontramos pronto ao nascer. É como se tudo sempre tivesse estado ali, imutável. Esse mesmo mundo, protegido com unhas e dentes pelas pessoas mais velhas, que escondem dos mais jovens a artificialidade dele, porque,

"[...] caso contrário, os jovens poderiam começar a ter ideias perigosas… De fato, se tudo o que constitui o mundo humano é artificial e convencional, então este mundo pode ser abolido e refeito de outra forma. Mas quem se atreveria a pensar pensamentos como este em relação a um mundo que tivesse a solidez das coisas naturais?" (p. 38)

Constantemente repetidos e compartilhados por gerações, os símbolos adquiriram naturalidade e foram consolidados pela frequência com que eram usados. Dessa forma, eles deixaram de habitar o mundo da imaginação e se tornaram parte da realidade, se aderindo aos projetos de vida humanos.

Os símbolos que se saíram vitoriosos na história humana impuseram-se pelo seu poder e por sua capacidade de resolver problemas práticos. Os derrotados, utilizados pelos perdedores, passaram a ser vistos como superstições, ridicularizados e perseguidos como heresias.

Alves atenta para a necessidade de compreendermos os símbolos que herdamos e de verificarmos como eles nos afetam para entender o que é a religião, coisa que demanda conhecimento histórico de nossa parte. O autor nos remete à origem da cultura ocidental ao exemplificar que,

"No processo histórico através do qual nossa civilização se formou, recebemos uma herança simbólica-religiosa, a partir de duas vertentes. De um lado, os hebreus e os cristãos. Do outro, as tradições culturais dos gregos e dos romanos. Com estes símbolos vieram visões de mundo totalmente distintas, mas eles se amalgamaram, transformando-se mutuamente, e vieram a florescer em meio às condições de vida dos povos que os receberam." (p. 39)

Ao adquirir concretude, os símbolos, amalgamados, são revestidos de sacralidade e onipresença. Tal condição torna o mundo invisível mais próximo da realidade do que a própria realidade material, estando o invisível presente nas artes, nas crenças e na vida cotidiana, onde se manifestava por meio das possessões demoníacas, bruxarias, milagres, encontros com o diabo e na ação de Deus sobre todas as coisas. Segundo Alves,

"[...] as coisas boas aconteciam porque Deus protegia aqueles que o temiam, e as desgraças e pestes eram por Ele enviadas como castigos para o pecado e a descrença. Todas as coisas tinham seus lugares apropriados, numa ordem hierárquica de valores, porque Deus assim havia arrumado o universo, sua casa, estabelecendo guias espirituais e imperadores, no alto, para exercer o poder e usar a espada, colocando lá em baixo a pobreza e o trabalho no corpo de outros." (p. 40)

Está aí, então, uma visão teológica da realidade, onde tudo estava disposto de acordo com a vontade de Deus, criador de um universo carregado de propósito. As intenções de Deus e seus objetivos com a criação foram buscados por pensadores e filósofos, orientando, durante muito tempo, a busca pelo conhecimento. Rubem Alves exemplifica essa condição ao escrever que,

"[...] é assim que um homem como Kepler dedica toda sua vida ao estudo da astronomia na firme convicção de que Deus não havia colocado os planetas no céu por acaso. Deus era um grande músico-geômetra, e as regularidades matemáticas dos movimentos dos astros podiam ser decifradas de sorte a revelar a melodia que Ele fazia os planetas cantarem em coro, no firmamento, para o êxtase dos homens." (p. 41)

Nesse contexto, o mundo imaginário era extremamente sólido e palpável para os que acreditavam nele, refletindo o funcionamento adequado dos símbolos que o constituía, se tornando ainda mais firme quando eles produziam o resultado esperado.

Esse mundo carregado de evidências enfrentava as dúvidas de poucos, que propunham novos sistemas de ideias tidos como visionários ou como loucos, questionadores ou iconoclastas.

O mundo religioso, no Ocidente, se transformou aos poucos e de forma constante. Segundo o autor, essas mudanças partiram de uma espécie de classe média, já que

"Os que estão em cima raramente empreendem coisas diferentes. Não lhes interessa mudar as coisas. [...] E os que se acham por baixo, esmagados ao peso da situação, gastam suas poucas energias na simples luta por um pouco de pão. [...] Foi de uma classe social que se encontrava no meio que surgiu uma nova e subversiva atividade econômica, que corroeu as coisas e os símbolos do mundo medieval." (p. 43)

A burguesia, classe referida por Rubem Alves, exerceu na Idade Média um papel diferente dos outros estratos. Sem funções determinadas por nascimento ou pela vontade de Deus, essa classe se interessou pelos aspectos práticos da vida como a produção, o comércio, o trabalho, o lucro e a riqueza.

A sacralidade e os símbolos do mundo invisível e imaginário eram inúteis diante de sua posição, pois não serviam às ações utilitárias. Essa visão ajudou a revolucionar o campo dos símbolos.

"Alguns acham que isto ocorreu por entenderem que os símbolos são cópias, reflexos, ecos daquilo que fazemos. Se isso for verdade, os símbolos não passam de feitos de causas materiais, eles mesmos vazios de qualquer tipo de eficácia. [...] O que ocorre é que, ao surgirem problemas novos, relativos à vida concreta, os homens são praticamente obrigados a inventar receitas conceptuais novas. Produziu-se, então, uma nova orientação para o pensamento, derivada de uma vontade nova de manipular e controlar a natureza." (pp. 44-45)

Assim, o mundo não mais será ordenado pela vontade de Deus, mas sim pela nova necessidade de riqueza imposta pela burguesia. O resultado foi uma atitude agressiva para a apropriação da natureza e sua transformação, fazendo com que a mesma atenda às necessidades produtivas desta nova vontade, assinalando o fim da ordem medieval.

O universo na era moderna perde seu caráter encantado diante das necessidades da burguesia, precisando ser racionalizado e organizado por meio do trabalho humano se submetendo à razão. Essa nova forma de conhecimento, o racional, busca um mundo decifrado e vazio de mistérios, tornando a religião os símbolos do invisível sem função. Com isso,

"Perde a natureza sua aura sagrada. Nem os céus proclamam a glória de Deus, como acreditava Kepler, e nem a terra anuncia o seu amor. Céus e terra não são o poema de um Ser Supremo invisível. E é por isto que não existe nenhum interdito, nenhuma proibição, nenhum tabu a cercá-los. A natureza é nada mais que uma fonte de matérias-primas, entidade bruta, destituída de valor." (p. 46)

Com o avanço da secularização, o lucro passa a ser reconhecido como padrão de avaliação, das coisas e das pessoas, sobrepondo os interesses da burguesia aos do mundo sagrado. A religião ficou circunscrita aos temas espirituais, sendo limitada à preservação do passado e das tradições.

Venceu a ciência alinha aos interesses da burguesia e adaptada à sua lógica. Interessada em compreender o funcionamento das coisas, a ciência buscou a finalidade para garantir maior controle sobre a natureza e seus fenômenos. Essa lógica transformou o papel da Universidade, que na Idade Média buscava compreender os propósitos divinos e na era moderna passou a servir aos propósitos do capital.

A verdade só seria válida se fosse atestada pelo método científico e teria de ser sustentada pelos fatos, exigindo visão e percepção dos fenômenos. Nesse contexto, Rubem Alves escreveu citando trechos de David Hume:

"E o discurso religioso? Enunciado de ausências, negação dos dados, criação da imaginação: só pode ser classificado como engodo consciente ou perturbação mental. Porque, se ele ‘não contém qualquer raciocínio abstrato relativo à quantidade e ao número’, ‘não contém raciocínios experimentais que digam respeito a matérias de fato e existência’, ‘não pode conter coisa alguma e não ser sofismas e ilusões’." (p. 49)

Na modernidade, o discurso religioso ficou destituído de sentido diante da ciência e passou a ser desdenhado por se referir a entidades imaginárias, estando forma do quadro simbólico estabelecido na era moderna. Na mentalidade racional da era moderna, a religião representava o atraso da Idade das Trevas e era tido como discurso infantil para grupos não evoluídos, se opondo ao progresso da ciência e da riqueza.

A religião perdeu sua centralidade e o domínio sobre os homens. Deus foi confinado aos céus e o mundo prático passou a ser gerido pelos capitalistas e pelos políticos, restringindo a religião ao mundo invisível, à consciência e ao pós vida. Mesmo diante deste mundo utilitário, o autor trouxe uma afirmação interessante:

"[...] Curioso que os fatos da economia não tivessem liquidado, de vez, o sagrado. [...] As pessoas continuam a ter noites de insônia e a pensar sobre a vida e sobre a morte… E os negociantes e banqueiros também têm alma, não lhes bastando a posse da riqueza, sendo-lhes necessário plantar sobre ela também as bandeiras do sagrado. [...] E também os operários e camponeses possuem almas e necessitam ouvir as canções dos céus a fim de suportar as tristezas da terra. E sobreviveu o sagrado também como religião dos oprimidos…" (pp. 50-51)

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