A VOZ DO DESEJO | FICHAMENTO

 

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A VOZ DO DESEJO

ALVES, Rubem. O que é religião. São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense, 1984

“Quais são as razões que fazem com que os homens construam os mundos imaginários da religião? Por que não se mantêm eles dentro do estóico e modesto realismo dos animais, que aceitam a vida como ela é, não fazem canções, nem revoluções, nem religiões e, com isto, escapam à maldição da neurose e da angústia?” (p. 87)

A religião era vista como um discurso sem sentido para os positivistas. Mas, segundo Albert Camus, a religião era razão de vida e de morte para muitos. Essa razão, na visão do pensador, não poderia ser oferecida pela ciência positivista e tampouco poderia ser destruída diante da crítica epistemológica. Marx e Durkheim, como visto em textos anteriores, aplicaram uma análise sociológica à religião.

O suicídio foi uma das dimensões da análise sociológica posta em analogia com a religião. Podendo ser aplicado à lógica, o ato de tirar a própria vida apresenta maior frequência em determinados grupos sociais, o que pode ser passível de explicação racional. O que a sociologia não revela, no entanto, é o que se passava na cabeça do suicida, conforme explica Rubem Alves na seguinte citação:

"Aquela última noite, quando a decisão estava sendo tomada: os pensamentos, as mãos crispadas, quem sabe as preces e as cartas esboçadas, os passos até a janela, os olhos tristes para o céu tranquilo… Não. Este drama/poesia que ocorre na solidão da alma que prepara seu último gesto escapa permanentemente da análise sociológica." (p. 86)

Análoga ao suicídio, a religião, mesmo quando colocada sob a análise sociológica, não revela o que existe na alma daquele que possui fé, o que torna sua experiência religiosa indiferente à sociologia. É aí que entra a psicanálise, que tenta adentrar na intimidade do pensamento humano.

Ludwig Feuerbach propôs analisar a religião como sonho. Os sonhos, para ele, apesar de vistos como um conglomerado de absurdos, representando um lugar onde as coisas são e não são, dá às pessoas a possibilidade de fazer coisas que não elas não fariam se tivessem acordados, além de apresentar recortes dos eventos vivenciados durante o dia. Feuerbach entendia o sonho como possível expressão da alma humana, representando sintomas do que ocorre em nosso íntimo.

"A proposta poderia ser aceita a não ser pelo fato de que nem nós mesmos entendemos o que os sonhos significam. Será que nos sonhos, falamos conosco mesmos numa língua que nos é estranha? Se os sonhos são revelações do nosso interior, por que é que tais revelações não são feitas na linguagem clara  e direta? Por que a obscuridade, o enigma?" (pp. 88-89)

Os sonhos falam como se fossem códigos, revelados com uma mensagem feita para não ser entendida. Por serem emitidos por nós mesmos, nosso íntimo nos reconhece como adversários ao criptografar as mensagens para que não as entendamos.

Tal condição revela, segundo Alves, o conflito interno entre nossos dois lados. Um deles visto e conhecido por todos, onde interpretamos diversos papeis diversos e vivenciamos e tememos as punições impostas pelo mundo real. O outro lado vive na escuridão, reprimido e escondido pelas normas de condutas sociais, estando o tempo inteiro impedido de fazer o que realmente desejamos.

"É o desejo, roubado dos seus direitos, e dominado, pela força, por um poder estranho e mais forte: a sociedade. O desejo grita: ‘Eu quero!’ A sociedade responde: ‘Não podes’, ‘Tu deves’. O desejo procura o prazer. A sociedade proclama a ordem." (p. 90)

Estamos submetidos às proibições impostas pela sociedade. Elas estão focadas naquilo que estamos tentados a fazer e que faríamos se não fosse proibido. Rubem Alves cita como exemplos o incesto, o furto, a nudez em público, os maus tratos contra crianças, animais e idosos, o homicídio, dentre outras ações que a sociedade, por meios diversos, nos proíbe de realizar.

Além disso, existe a repressão a qual nós mesmos nos submetemos, o que nos coloca internamente em papéis antagônicos. Essa auto repressão, que compõe a essência do indivíduo para a psicanálise, se manifesta no sentimento de culpa, que no seu ponto mais extremo levaria ao suicídio.

"Vivemos em guerra permanente conosco mesmos. Somos incapazes de ser felizes. Não somos o que desejamos ser. O que desejamos ser jaz reprimido… E é justamente aí, diria Feuerbach, que se encontra a essência do que somos. Somos o nosso desejo, desejo que não pode florescer." (p. 91)

Nesse momento o autor nos trás a visão de Sigmund Freud sobre o desejo. Para o psicanalista, o desejo humano permanece inconsciente diante da repressão à qual é forçado. Impossível de ser saciado ou destruído, o desejo fica escondido no esquecimento, insistindo em nos enviar mensagens cifradas, que se manifestam nas neuroses, nos lapsos e nos equívocos, nos sonhos.

Para Freud a religião nasce como uma mensagem do desejo, como manifestação da esperança e do prazer. Ele discorda de Feuerbach ao afirmar que o desejo está fadado ao fracasso, já que não há lugar para ele no mundo em que foi criado, tornando impossível alterar a realidade.

Diante deste determinismo, Freud dizia que nós, seres humanos, desenvolvemos mecanismos para nos consolar e para fugir dessa dura realidade, nos permitindo encontrar o prazer na fantasia, produzindo ilusões para tornar o dia a dia tolerável.

"A religião é um destes mecanismos. Religiões são ilusões, realizações dos mais velhos, mais fortes e mais urgentes desejos da humanidade. Se elas são fortes é porque os desejos que elas representam o são. E que desejos são estes? Desejos que nascem da necessidade que têm os homens de se defender da força esmagadoramente superior da natureza. E eles perceberam que, se fossem capazes de visualizar, em meio a esta realidade fria e sinistra que os enchia de ansiedade, um coração que sentia e pulsava como  o deles, o problema estaria resolvido." (pp. 92-94)

Assim como Marx definiu a religião como o ópio do povo, Freud a via como ilusões criadas para tornar a vida menos sofrível. Mas, segundo o psicanalista, o processo de amadurecimento da sociedade condenaria as religiões ao completo desaparecimento, assim como o indivíduo, que, quando cresce, abandona progressivamente a ludicidade e os desejos da infância e se adequa ao mundo real. Tal processo seria equivalente ao desenvolvimento da sociedade que progressivamente se pauta na explicação da realidade dada pela ciência.

Diante da religião, Freud privilegiou o sonho. Possuidor dos segredos do inconsciente humano, o sonho para Freud era inútil na realização do desejo. Ele serviria apenas para conduzir a psicanálise a um passado que já foi. É por isso que, segundo ele, os sábios e racionais esquecem e liquidam propositadamente seus sonhos juntamente com a religião.

Feuerbach tinha outra visão. Para ele os sonhos eram portadores da essência do coração humano, revelando aquilo que a realidade sufocava. Os sonhos eram confissões de subversão, de negação do mundo construído. O sonho alimentava a utopia de um mundo novo onde existiria harmonia da realidade com o desejo.

"Não é de causar espanto que, no livro de Orwell, 1984, um homem tenha sido condenado à prisão por haver sonhado. Sonhou em voz alta. Confessou que os seus desejos estavam muito distantes e eram muito diferentes. E, sem que ele sequer tivesse consciência daquilo que o seu coração queria [...], foi confinado à prisão… E é justamente sobre tais desejos que fala a religião." (p. 97)

Diferente dos sonhos, a linguagem religiosa é uma mensagem turva e escurecida e não uma janela para outro mundo como acreditavam os positivistas. A linguagem religiosa, ao contrário de revelar outro mundo, transfigura o nosso, secular e real. Feuerbach via essa linguagem como um espelho que reflete nossa própria essência.

A religião, na interpretação de Feuerbach, ao contrário de criar os deuses, afirmava a divindade do próprio homem, que o fazia se auto reconhecer como ser absoluto. O filósofo explica que esse sentido, essa revelação de que os deuses não existem, não é visto pelas pessoas carregadas de fé religiosa.

Na religião como sonho de Feuerbach, Deus desaparece na medida em que podemos compreendê-la e interpretá-la. No final, a religião seria a utopia da transformação social, representado o desejo de quebrar as correntes que aprisionam o desejo humano. Nesse sentido,

"[...] tudo se transforma sob os olhos. Porque as religiões, caleidoscópios de absurdos, se configuram agora como símbolos oníricos dos segredos da alma, inclusive a nossa. E por detrás dos mitos e ritos, cerimônias mágicas e benzeções, procissões e promessas, podemos perceber os contornos ainda que tênues, do homem que espera uma nova terra, um novo corpo. E os seus sonhos religiosos se transformam em fragmentos utópicos de uma nova ordem a ser construída." (p. 101)

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