OS SÍMBOLOS DA AUSÊNCIA | FICHAMENTO


 
OS SÍMBOLOS DA AUSÊNCIA

ALVES, Rubem. O que é religião. São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense, 1984


“O fato é que os homens se recusaram a ser aquilo que, à semelhança dos animais, o passado lhes propunha. Tornaram-se inventores de mundos. E plantaram jardins, fizeram choupanas, casas e palácios, construíram tambores, flautas e harpas, fizeram poemas, transformaram os seus corpos, cobrindo-os de tintas, metais, marcas e tecidos, inventaram bandeiras, construíram altares, enterraram os seus mortos e os prepararam para viajar e, na sua ausência, entoaram lamentos pelos dias e pelas noites…” (p. 17)


O capítulo inicia com Rubem Alves falando sobre os animais, seres que agem por instinto e impulsos inatos. Eles se valem de uma memória genética que não demanda a transmissão cultural e que os tornam previsíveis em suas trajetórias de vida. 


O ser humano, por outro lado, ao nascer, não torna possível que saibamos o que ele fará em sua estadia no mundo. As certezas se limitam à genética, à sua fisiologia e à aparência física. Não há como saber quais são seus gostos, não tem como determinar seus valores. Rubem Explica essa condição da seguinte forma:


"Porque o homem, diferentemente do animal que é o seu corpo, tem o seu corpo. Não é o corpo que o faz. É ele que faz o seu corpo. É verdade que a programação biológica não nos abandonou de todo. [...] Mas ela diz muito pouco, se é que diz alguma coisa, acerca daquilo que iremos fazer no mundo afora." (pp. 16-17)


O mundo humano, oposto ao mundo animal, é livre do imperativo da sobrevivência, não sendo o corpo que determina nossas ações. Essa situação nos permite fazer coisas que aos animais seriam impossíveis como cometer suicídio, se sacrificar em prol de uma causa e renunciar à vontade e aos prazeres. Ou seja, estamos em constante negação aos imperativos do nosso corpo.


Esse mundo criado pela humanidade é chamado de cultura. Ela se inicia a partir do momento em que os impulsos do corpo deixam de determinar as ações e, segundo o autor,


"Esta é a razão por que, diferentemente das larvas, abandonadas pela vespa-mãe, as crianças precisam ser educadas. É necessário que os mais velhos lhes ensinem como é o mundo. Não existe cultura sem educação. Cada pessoa que se aproxima de uma criança e com ela fala, conta estórias, canta canções, faz gestos, estimula, aplaude, ri, repreende, ameaça, é um professor que lhe descreve este mundo inventado, substituindo, assim, a voz da sabedoria do corpo, pois que nos umbrais do mundo humano ela cessa de falar." (p.18)


A razão de tudo isso ocorrer é ainda um mistério antropológico, já que o próprio Rubem Alves alegou, nesta edição, não possuir as respostas para o nascimento da cultura.


O fato é que o homem se viu desadaptado ao mundo. Tido pela tradição filosófica como um ser racional, Rubem Alves o descreve como um ser de feito de desejos, o que pode ser constatado pelas suas produções culturais. O desejo é apontado com um sintoma  da privação e isso fica claro no exemplo dado pelo autor:


"A saudade só aparecerá na distância, quando estiver longe do carinho. Também não se tem fome - desejo supremo de sobrevivência física -  com o estômago cheio. A fome só surge quando o corpo é privado do pão. Ela é testemunha da ausência do alimento. E assim é, sempre, com o desejo." (p. 20)


O desejo surge, então, na falta do prazer oferecida pelo espaço real. Isso faz com a cultura crie exatamente o objeto desejado pelo grupo, nos colocando numa luta que vai além da mera sobrevivência, nos tornando produtores do supérfluo como as canções fúnebres que afastam o terror da morte, os poemas que aliviam o sofrimento, os gritos de protestos que renovam a esperança.


A cultura cria os objetos do desejo humano, muitos deles existentes apenas na imaginação e outros presentes nos símbolos como ideais que muitas vezes não se concretizam, refletindo desejos que não foram realizados. Sobre isso, Rubem Alves escreveu que,


"À volta do jardim está sempre o deserto que eventualmente o devora; [...] e o corpo que busca o amor e prazer se defronta com a rejeição, a crueldade, a solidão, a injustiça, a prisão, a tortura, a dor, a morte. [...] E enquanto o desejo não se realiza, resta cantá-lo, dizê-lo, celebrá-lo, escrever-lhe poemas, compor-lhe sinfonias, anunciar-lhe celebrações e festivais. E a realização da intenção da cultura se transfere então para a esfera dos símbolos." (p. 21-22)


Então nós passamos a utilizar os símbolos para combater o medo, para nos proteger do caos. O uso deles transforma aquilo que é comum em algo carregado de significados, passando a existir pelo poder humano, conferindo a si um valor simbólico. O uso dos símbolos integra magicamente os objetos ao destino humano, diferenciando verdades inertes às experiências do sagrado.


Esse mundo sagrado está fora dos limites do mundo profano, que está restrito aos aspectos práticos da vida cotidiana. O mundo sagrado está repleto de coisas invisíveis, que são contempladas somente pelos olhos da fé, permitindo instaurar o sagrado. Para Rubem Alves,


"[...] é o ao invisível que a linguagem religiosa se refere ao mencionar as profundezas da alma, as alturas dos céus, o desespero do inferno, os fluídos e influências que curam, o paraíso, as bem-aventuranças eternas e o próprio Deus. Quem, jamais, viu qualquer uma destas entidades." (p. 26)


O mundo sagrado transforma objetos comuns, como o altar, o pão e o vinho, em coisas sagradas. Se tornam parte do discurso religioso. Difícil de ser compreendido à quem não vivenciou a religião, o discurso religioso é construídos pelos símbolos usados pelos homens,  diferentes entre si e produtores de diferentes mundos sagrados.


O discurso religioso pode assumir diversas formas. Aqueles em amizade com a natureza torna sagrado seus fenômenos; os apoiados na vitória busca abençoar as armas e se colocar como símbolo do triunfo; e os que são produzidos pelos gemidos dos sofredores buscam a utopia da paz e a recompensa pós-morte.


O discurso religioso fala daquilo que nunca foi visto, de objetos construídos pela fantasia e pela imaginação humana. O autor adverte que não devemos confundir imaginação com falsidade e tampouco está querendo dizer que a religião é fruto da imaginação. Segundo ele,


"Ao contrário, estou sugerindo que ela tem o poder, o amor e a dignidade do imaginário. [...] Imaginemos que estes homens tivessem sido totalmente objetivos, totalmente dominados pelos fatos, totalmente verdadeiros [...] poderiam ter inventado essas coisas? Onde estava a flauta antes de ser inventada? E o jardim? E as danças? E os quadros? Ausentes." (p. 31)


Os símbolos, dessa forma, se assemelham ao horizonte, que sempre está distante de nós e permanentemente inalcançável, servindo apenas como referencial para ir adiante. É nesse horizonte que se constata os pontos onde a cultura não fracassou, representando que ela não foi capaz de concretizar, testemunhando o que não pode ser produzido.


É nesse emaranhado de símbolos que surge a religião, concentrada nesse horizonte que não pode ser alcançado onde estão presente as coisas, objetos físicos, e os gestos, objetos simbólicos. As coisas e gestos que habitam o mundo sagrado estão repletos de significados simbólicos.


Já as que são exclusivas do mundo físico, cuja existência dependem apenas de si próprios, não carecem da ação ou da interpretação humana, sendo eficazes em si mesmos, habitando o mundo natural. Nesse contexto, segundo Alves,


"Nenhum fato, coisa ou gesto, entretanto, é encontrado já com as marcas do sagrado. [...] A religião nasce com poder que os homens têm de dar nomes às coisas, fazendo uma discriminação entre coisa de importância secundária e coisas nas quais está seu destino, sua vida e sua morte se dependuram. E esta é a razão por que, fazendo uma abstração dos sentimentos e experiências pessoais que acompanham o encontro com o sagrado, a religião se nos apresenta como um certo tipo de fala, um discurso, uma rede de símbolos." (p. 24)


O autor volta a comparar o mundo animal ao mundo humano ao falar sobre a ordem. Trata-se de um elemento necessário à sobrevivência animal onde as ações são feitas com objetivos claros, mantendo nelas padrões que perduram séculos e milênios.


Os homens, por sua vez, que não são governados pelo organismo biológico, são regidos pela cultura, numa busca incessante por um mundo à sua imagem e semelhança, eternizando nele suas expressões culturais. O papel da religião, dessa forma, é cumprir esse projeto exigente do ego, sendo uma hipótese, uma espécie de aposta na existência de uma face humana ao universo. Nesse sentido, Rubem Alves reforça,


"É verdade que os homens não vivem só de pão. Vivem também de símbolos, porque sem eles não haveria ordem, nem sentido para  a vida e nem vontade de viver. Se pudermos concordar com a afirmação [de Durkheim] de que aqueles que habitam um mundo ordenado e carregado de sentido gozam de um senso de ordem interna, integração, unidade, direção e se sentem efetivamente mais fortes para viver [...], teremos então descoberto a efetividade e o poder dos símbolos e vislumbrado a maneira pela qual a imaginação tem contribuído para a sobrevivência dos homens." (p. 35)


PRÓXIMO CAPÍTULO: O EXÍLIO DO SAGRADO


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